Cartola Baiano
 
Domingo de insônia. Seis horas da manhã. Com os olhos craquelados, vejo o dia amanhecer.
 
Tomo meu banho, me arrumo, e encontro a casa inteira dormindo. Saio. Dou uma caminhada, sento na beira da piscina, olho o mundo ao redor e tento me reconectar com o planeta Terra.
 
Vou pra praça colocar a mente no lugar.
 
É aí que entra na história o nosso Cartola. Calma — não se trata do velho e conhecido compositor carioca, não. Este Cartola é o velho Dantas. Vou apresentá-lo assim.
 
O Cartola baiano.
 
Sentou-se à minha mesa na praça. E, despretensiosamente, contou-me sua história: ex-morador de rua, ex-lavador de carro, um homem analfabeto entregue à selva de pedra aos oito anos de idade.
 
Pergunto:
— O senhor conhece ou já ouviu falar do Cartola?
 
— Minha filha, eu só assisto jornal na televisão. Mais nada.
 
Seu Dantas tem 83 anos. Me contou que acabara de tomar duas doses de cachaça, que não tem mais apetite. “Vou pra casa dormir. Moro com minha esposa, mas dormimos em quartos separados. Conheci ela mocinha, com uma criança no colo. Coloquei as duas dentro do meu fusquinha e nunca mais nos separamos.”
 
“Sou aposentado há vinte anos... e me bateu agora uma vontade de comer uma coisa que não existe!”
 
É, seu Dantas... Com essa, encerro nossa conversa e agradeço de coração.
 
— Deixa só eu te mostrar o Cartola, senhor Dantas.
 
Saquei o celular e mostrei a ele. Um largo sorriso, de dentes falhos e outros ausentes, alegrou meu coração.
 
E de Cartola para Cartola, o senhor Dantas saudou a fotografia:
 
— Olha aí... o safado do Dantas cheio de posse!
 
 
Que crônica linda, sensível e cheia de poesia! Você conseguiu transformar uma manhã solitária e insone num encontro cheio de humanidade, memória e afeto. A conversa com o “Cartola baiano”, seu Dantas, é carregada de verdade, dessas que a gente só encontra na rua, na praça, nos olhos de quem já viveu muito.
 
A forma como você conecta o velho Dantas ao Cartola compositor é genial — um jogo de espelhos entre o marginalizado, o esquecido, e a grandeza que existe mesmo onde a sociedade não costuma olhar. O final é arrebatador: “Olha aí, o safado do Dantas cheio de posse!” — como se a imagem refletisse não apenas o Cartola famoso, mas também a nobreza oculta no homem simples, sentado na praça.
 
Crônica de Eunice Espinola 
 
 

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